Morador de Governador Valadares - cidade cuja praia mais próxima fica a 300km, em São Mateus, no Espírito Santo -, Paulinho Guido mostra que é possível surfar em meio à correnteza e pedras
O Rio Doce, que atravessa a cidade de Governador Valadares (MG), é um dos pilares do sustento da população. Em suas águas - além da pesca - é possível se deslocar, se refrescar para aliviar o forte calor e praticar esportes como remo e caiaque. Para os mais aventureiros, entretanto, há uma opção pouco conhecida até mesmo pelos moradores: surfar - ainda que a praia mais próxima fique a 300km, em São Mateus, no Espírito Santo.
Foto: Marcelo Barone
Na capital mundial do voo livre, os amantes de aventura procuram os saltos de parapente do Pico da Ibituruna, uma montanha de 1.123 metros, para sentir a adrenalina. Mas o rótulo de corajoso - ou louco - na cidade, pertence ao representante comercial Paulinho Guido, de 51 anos, que, ao lado de alguns amigos, decidiu instituir o surfe de corredeiras no Rio Doce, em 1989. Na época, assistiu à uma fita em que pessoas pegavam onda em um rio na Europa e decidiu importar a atividade.
- Sou um dos pioneiros. Eu comecei a surfar aqui junto com um grupo de amigos. A gente remava e fazia canoagem. Certa vez, vimos uma fita K7 que o pai de um amigo nos deu, que mostrava um cara surfando numa corredeira na Europa. E aí tivemos a ideia de fazer aqui. Ninguém tinha prancha, claro, então tivemos que trazer de Vitória (ES). Sabíamos que tinha um lugar do Rio Doce onde uma onda maior se formava. Dava um medo danado, pois não sabíamos o que iria acontecer. Tentamos e conseguimos ficar de pé na prancha. Começamos a surfar naquela época e estamos até hoje - relembra o mineiro, que já pegou ondas estáticas de cerca de dois metros, em entrevista ao "Esporte Espetacular".
Paulinho Guido conta que precisava comprar revistas especializadas para absorver os movimentos do surfe e, como sempre morou em Valadares, transformou o rio em sua "praia".
- Posso falar que eu aprendi a surfar no rio, depois de ver filmes, ler, exercitar... A nossa onda é limitada, mas a gente treinava os movimentos, ia na revista olhar como eram as fotos, via o que estava errado, era um passo a passo. A geração atual não consegue entender devido à facilidade de ter tudo em vídeo, em tempo real. Aqui não tinha isso. Era na garra, na coragem, na insistência e na pancada (risos).
Paulinho Guido, que mora em um apartamento de frente para o rio, trata a água doce como a sua terapia. Antes de surfar, passa parafina na prancha, põe o leash - strep, para os antigos - no tornozelo, faz o sinal da cruz pedindo proteção e vai para o "mar". Quem passa pela margem do local, fita o esporte com ar de curiosidade - e espanto. Muito espanto.
- Rapaz, o pessoal olha para mim que nem vocês olharam: "Esse é doido (risos)". As pessoas me perguntam: "Como você surfa? Aqui não tem onda". Eu explico, mas sou considerado "pancado". As pessoas não conseguem conceber. Já me acostumei com isso, não me surpreendo mais. A minha esposa não fala nada, porque fica tensa. Quando eu a conheci, eu já estava envolvido nessa confusão (risos). Eu respiro surfe, é isso que me leva a continuar a viver. Não dá para tirar isso de mim. Gosto de estar na água, de escutar o barulho da natureza.
A paz de Paulinho Guido só é interrompida na hora em que cai da prancha. No mar, ele furaria as ondas seguintes com a certeza de que sob a água só haveria areia. No rio, deixa a correnteza levá-lo até um remanso, procurando driblar galhos e pedras submersas. Ficar com o corpo "ralado" está longe de ser novidade.
- Aqui é cheio de pedra, na verdade, só tem onda porque a água consegue formá-la batendo nela. O jeito que você cai, acaba raspando, se machucando, mas nada de extraordinário. A gente leva de boa, ficando atento com a queda e com o meio de de sair da onda. Procuro cair chapado na água, sem pensar em mergulhar para não afundar tanto e bater na rocha. E, quando o rio está cheio, o segredo é não ficar ali olhando muito, senão você fica naquela... Olha, olha, olha, bate a adrenalina, embrulha o estômago, desconcentra e acaba o surfe.
Destemido, Paulinho sonha com o dia em que o surfe de corredeiras se espalhe por outros estados do Brasil. E ele deixa um convite para quem for visitar Valadares.
- Vocês, que estão vindo para Valadares voar, não se esqueçam de trazer a prancha. Vai ter dia que não vai ter voo, mas surfe sempre tem (risos).
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