Jogo em que o garoto, então com 17 anos, fez sua estreia completa uma década nesta sexta (27). Em entrevista ao ge, Dória fala sobre o passado no Rio de Janeiro e futuro no futebol mexicano
Boa parte da torcida alvinegra provavelmente sabe o que estava fazendo em 27 de maio de 2012, quando o Botafogo bateu o Coritiba por 3 a 2, na segunda rodada do Brasileirão daquele ano. É que aquele jogo deixava o time na liderança, dando indícios promissores de um bom campeonato, e marcava a estreia de um jovem de 17 anos, cria da base de General Severiano: o zagueiro Matheus Dória.
Hoje, aos 27, Dória se destaca no futebol mexicano. No ano passado, por exemplo, foi eleito o melhor zagueiro do campeonato local. E tudo começou naquela tarde de sábado no Couto Pereira, com a camisa alvinegra, em que o jovem apresentou bom desempenho, mesmo que tivesse tudo para não fazer um bom jogo. Aos 29 segundos do primeiro tempo, ele empurrou contra o próprio gol em seu segundo toque na bola como profissional:
Foto: Arquivo pessoal
- Foi uma jogada que ninguém esperava. Eram 30 segundos de jogo, eles vieram pra cima, atacaram e o Lincoln chutou. O chute era um pouco despretensioso, o Renan estava na jogada. Mas bateu no meu pé, desviou e entrou no gol. Eu tava passando na frente da jogada e acabei fazendo o gol contra. Depois disso eu fiquei um pouco nervoso, mas depois consegui me concentrar, me recompor e fiz um jogão, deixei uma boa impressão. A gente conseguiu ganhar no campo do Coritiba depois de muito tempo. Foi inesquecível.
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- O Botafogo estava há muito tempo sem ganhar. Foi 3 a 2 se não me engano e todo mundo falou que estávamos há muito tempo sem ganhar. E ainda consegui mostrar que dei a volta por cima depois de uma jogada ruim. No primeiro minuto. Poderia fazer besteira o resto do jogo todo, mas deu tudo certo.
Em conversa com o ge, Matheus Dória relembrou os tempos de Botafogo, comentou o fato de o clube ter virado uma SAF e falou sobre sua vida no México, onde encerrou sua quarta temporada pelo Santos Laguna. Além disso, explicou a icônica foto em que aparece lendo um manual de geladeira no banco em Moça Bonita ao lado do Seedorf.
- Na semana eu tinha feito um treino da base contra o profissional e o Oswaldo me conheceu ali. Uns meses antes eu tinha jogado a Copinha também e ele já me conhecia. Então, quando eu fazia os amistosos do time profissional contra a base, eles me chamavam pra jogar. Ele estava de olho em mim e tinha jogadores na minha frente, porque eu era Sub-17. Supostamente eles deveriam estrear antes de mim. Mas ele já me conhecia, gostava do meu jogo e quando aconteceu isso da lesão ele me chamou e eu fui. Treinei umas duas ou três vezes e também estava treinando com os jogadores do Sub-20 para ver o que dava e gostou mais de mim. Na semana que ele tava me vendo eu fiz um gol de bicicleta do nada. A bola sobrou, eu virei uma bicicleta e fiz o gol. Acho que foi ali que ele falou que ia ser eu mesmo. A estreia foi eu e Briner na zaga.
Estava nervoso?
- Lá tinha muito trabalho de psicólogos, desde a base. O Botafogo sempre deu muita atenção a esse tipo de trabalho para que o jogador não fique metido depois de ser titular e também a ter paciência para controlar ansiedade. Os psicólogos lá ajudavam bastante. Eu já vim com esse trabalho e também já conhecia a psicóloga da época. A gente fazia o trabalho de conseguir dar a volta por cima e transformar uma situação ruim, agarrar algo de positivo dela, e transformar numa situação boa. Eu me fixei nisso. Já tinha acontecido, não tinha como voltar, e precisava salvar o resto dos minutos que faltavam.
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Sequência no ano
- Fiz esse jogo e logo voltaram os titulares, mas segui treinando no profissional. O Oswaldo sempre me chamava e me colocava para treinar. Como ele já tinha os titulares, eu jogava no sub-20 no fim de semana. Passava a semana inteira treinando com o profissional e jogava com o Sub-20 no fim de semana para ter ritmo de jogo. No segundo turno o time estava indo mal, as coisas estavam complicadas, o Oswaldo estava com o trabalho em risco.
- No segundo turno, de novo contra o Coritiba, ele modificou o time inteiro, botou toda a garotada que estava treinando forte. Joguei com Jadson, Gabriel, Vitinho... e ganhamos de novo, no Nilton Santos, e pegamos uma sequência muito boa. Terminamos o ano bem e o Oswaldo conseguiu terminar o ano dele bem, dando tudo certo. Foi bacana que os dois jogos, e quando eu passei a ser titular mais constantemente foi justamente a partir do jogo contra o Coritiba.
Consegue acompanhar o Botafogo?
- Pelo horário e também muitas vezes bate com horário de treino e também tem meus jogos aqui, então não dá pra acompanhar todos meus jogos pra sentar e ver. Mas eu sempre acompanho nas redes sociais, tenho bastante amigo que trabalha também no clube. Estou sempre de olho.
Como anda a carreira no México?
- Nessa última temporada, que termina agora, nosso time não foi bem. Não jogamos bem, tivemos muitos jogadores do time titular que saíram, mudança de treinador, foi uma temporada difícil. Mas nas anteriores sempre foi um time que brigava, chegava na parte final do mata-mata e que ninguém quer enfrentar a gente. É um time de muito respeito e brigador. Nosso apelido é time de guerreiros. É um time que chega, se impõe, joga os 90 minutos em cima, apertando, independente se tá perdendo ou ganhando. Eu gosto muito do estilo do clube por causa disso.
- Troca de treinador, mas busca outro com a mesma característica. A identidade do clube não muda, está bem escrito e desenhado como vai ser. Há um ano nós fomos vice para o Cruz Azul, que foi na temporada que fui eleito o melhor zagueiro do México, ganhei a Bola de Ouro, na cerimônia maneira que eles fazem. Depois chamaram a gente para jogar contra os melhores dos Estados Unidos. Estou conhecendo e aprendendo bastante. Por incrível que pareça, todo mundo fica nessa só de Europa, mas acho que consegui atingir meu melhor momento na minha carreira aqui no México e continuo evoluindo e aprendendo aqui.
Futebol mais intenso no México
- Tenho muitos amigos que são da Europa e falam do futebol mexicano sem saber. E vários que vieram da Europa pra cá e falam "que isso, cara?". Por exemplo, o Florian Thauvin, que jogou comigo no Olympique de Marselha, teve um pouco de dificuldade nos primeiros meses. Pensou que seria uma coisa molezinha porque era top e deitava lá na França, mas teve dificuldade. Agora ele está muito bem, se adaptou. Mas não é como as pessoas acham de que vai pro México e é fácil. Até mesmo os brasileiros que vêm pra cá não têm vida fácil.
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- É um futebol técnico e muito intenso, com muita pressão, o último colocado ganha de 2 a 0 do primeiro. Acho que o formato do campeonato ajuda também. Se você estiver numa tarde ruim no mata-mata você tá fora, mesmo se for o melhor time do campeonato pegando o último. Essa que é a alegria daqui. Apertura e Clausura tem mata-mata próprios. Depois quem ganha cada um tem algo como a Supercopa. Então você pode ser campeão do Campeonato Mexicano duas vezes no mesmo ano. Não é formato de primeiro turno e segundo.
Tinha planos de se naturalizar mexicano?
- Estou feliz demais. Justamente por isso que recebi o convite e aceitei me naturalizar sem hesitar. Minha família, minha esposa, minhas filhas, todo mundo que vem aqui me visitar fica muito feliz. A estrutura que o clube oferece para trabalhar, o plano de carreira que tenho dentro do clube é uma coisa que eu nunca tive em nenhum outro lugar. Então eu estou mais do que adaptado. Estou em casa, real. Estou no processo de naturalização. Acho que mais alguns meses devo estar recebendo minha cidadania, dar entrada nos passaportes e tudo isso para ser mexicano.
Pra Copa agora não dá né?
- Essa não dá porque tem muitas coisas de documento, burocracia, tenho que dar entrada em passaporte... Tem muita coisa que leva tempo. Mesmo que eu fosse o mais otimista possível, tem gente que está no processo de Copa do Mundo há quatro anos e eu não vou chegar, é até falta de respeito chegar com um mês lá e ir. Obviamente que se desse e eu fosse chamado não iria recusar, mas com o tanto de burocracia que gera, não tem como.
- Juntamente com o presidente do clube, tinha essa oportunidade aparecendo e disse que era claro que eu queria. Não tinha que perguntar nada a ninguém. Hoje sou capitão do time. Hoje, as coisas que acontecem no clube, o dono confia bastante em mim para ter uma conversa aberta tanto quando vai mal, quanto quando vai bem. Estou em casa, real. Vivo o melhor momento da minha carreira e não tenho porque não aproveitar essa oportunidade. Além de devolver o carinho das pessoas. Não tenho como só dizer "Obrigado pelo carinho, povo mexicano". Eu posso devolver esse carinho e esse amor que o povo tem por mim dentro de campo, jogando e ajudando dentro de campo se Deus quiser.
- Nunca fecho a porta pra ninguém, você não sabe o dia de amanhã... Deus queira que não, mas às vezes as coisas não vão bem, ou então aparecem dois, três zagueiros melhores e que interessam ao clube e eu não estou mais no mesmo nível que antes... Você não pode fechar a porta pra ninguém. E ainda tem oportunidades que acontecem na vida e que são só uma vez. Mas hoje a resposta seria que não. Mas a gente não sabe se daqui a um, dois meses como que vai ser. Temos que estar sempre prontos para quando a oportunidade aparecer.
Como está o projeto de ser o brasileiro com mais jogos no México?
- No México não sei se vou conseguir, mas no meu clube, sim. Posso brigar para ser o zagueiro com mais gols. Eu posso entrar nessa briga e são coisas que eu quero fazer história aqui dentro no meu time. Por isso que não tenho interesse, hoje, de mudar de clube. Porque estou me consolidando e criando uma história bem bacana. Deixar uma história marcada aqui vale muito mais a pena do que ficar mudando de clube. Tive outras propostas de América, Tigres, mas acho que posso ser muito mais representativo aqui no Santos Laguna.
- Acho que o zagueiro com mais gols tem 20 e poucos. Eu tenho uns 12, 13, então dá pra chegar na briga. Olhando rápido, também não parei para analisar. Mas são coisas que você coloca como meta para evoluir, de ter o desafio pessoal de chegar nos jogos e você evoluir cada vez mais.
Como enxerga esse momento do Botafogo com SAF e tudo mais?
- É a melhor coisa possível. Era um desejo meu que isso acontecesse com o Botafogo há tempos. Aqui no México é assim. O dono faz de tudo para dar certo porque senão ele tá perdendo dinheiro do bolso dele. Obviamente tem investidores e patrocinadores, mas é uma coisa que é dele. Ele quer ganhar e estar lá em cima. Com o Botafogo acho que não vai ser diferente.
- Tem muito mais organização, trabalho por trás que as pessoas precisam mostrar serviço pro dono e não para um presidente que é eleito e às vezes tem uma mentalidade de ficar tantos anos na instituição, mas ao mesmo tempo não quer fazer o melhor porque sabe que vai embora. O dono, não. É uma coisa dele e vai tentar deixar o melhor dele porque sabe que é a vida dele que está em jogo. São seus bens, o dinheiro que investiu do próprio bolso para poder comprar o clube. Aqui tem muitos casos que o cara criou o clube do zero, como é o meu time, ele montou do zero. Nesse caso, do Botafogo, o cara investiu no time, comprou. Então ele não quer perder. Quem tem a ganhar são os jogadores que vão ver uma estrutura melhor para trabalhar e a torcida que vai ver muito resultado favorável.
Vive circulando uma foto sua sentado do lado do Seedorf em Moça Bonita em que o pessoal diz que você tá lendo um manual de geladeira, é isso mesmo? (Confira a foto, registrada pelo fotógrafo Guilherme Pinto, publicada no jornal Extra clicando aqui)
- Isso era aquela folha que dava as informações do time adversário e nosso. Por exemplo, tinha lá "Dória, canhoto, 27 anos, 1,90m, 85kg". Era isso e tinha dos dois times. Até eu já estou acreditando que era manual de geladeira (risos). O vídeo do cara falando é muito bom: "Seedorf, cara com não sei quantas Champions League ao lado do Dória lendo um manual de geladeira" (risos). É muito bom. São os velhos tempos, né? Cada vez que eu vejo o vídeo tem um comentário diferente, do pessoal falando que eu tava fazendo conta para pagar, outra pessoa dizendo que eu tava lendo um cardápio para pedir um podrão depois do jogo (risos).
- É muito bom. Pessoal vai viajando. Todos meus amigos me mandam isso. Já tem uns dois anos que eu recebo no mínimo uma vez por mês. Ontem mesmo um amigo me mandou perguntando se eu já tinha visto. Sempre que me mandam eu vejo de novo e dou risada. De vez em quando me mandam no privado perguntando: "Mano, fala logo, é verdade? Que isso?". Eu dou só risada. Tem uns estressados que ficam me xingando dizendo "Esse é o nível do futebol brasileiro. Não é possível que o cara estava lendo um manual no banco de reservas". Isso o jogo não tinha nem começado, eu tava lendo de boa... Mas tem uns estressados que falaram que eu era irresponsável (risos). Eu dou risada lendo tudo, mas reconheço que parece mesmo.
Possibilidade de jogar pela seleção mexicana
- Eles falaram com o pessoal do meu clube para caso precisasse de alguma ajuda para buscar algum documento que fosse difícil... Até porque precisa de muitos documentos meus do Brasil, certidão... Se tivesse alguma forma de trazer e enviar eles estavam disponíveis. Mas o pessoal do clube é que tá fazendo tudo pra mim. Toda a situação de documentos tem três pessoas que estão vendo diariamente isso. A questão agora é me preparar. Saber que daqui a quatro anos eu tenho que estar melhor ainda do que estou agora porque só vai aumentar a concorrência e tenho que estar bem para estar lá. É questão de me cuidar, comer bem, descansar e vamos que vamos.
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