No Dia da Visibilidade Trans, ge abre espaço para depoimento daquela que seria a segunda jogadora transexual a atuar na elite do vôlei brasileiro: "Não queremos invadir espaço de ninguém"

Foto: Arquivo Pessoal
Naquela quinta-feira, no fim de outubro de 2021, Mabelly Souza já tinha as malas quase prontas. No dia seguinte, ela embarcaria rumo a Barueri. Estava ansiosa. Era a estreia do Curitiba na nova temporada da Superliga. Seria, também, a primeira vez que a jogadora de 31 anos atuaria como profissional. Mas uma série de entraves fez ruir um sonho de anos. Mabelly, transexual, vai precisar esperar mais um pouco para, enfim, entrar em quadra.
A jogadora seria inscrita pelo Curitiba para a atual temporada da Superliga. No dia anterior à estreia, porém, Mabelly foi barrada pela Confederação Brasileira de Vôlei. A entidade afirma que a jogadora não apresentou os 12 exames seguidos que comprovariam que seu nível de testosterona não havia ultrapassado o limite de 10nmol/L. Ela, por outro lado, diz que sua inscrição teria sido vetada por não ter enviado um documento firmado em cartório de que seria mulher.
O ge pediu novos posicionamentos da CBV e de Gisele Miró, gestora do Curitiba. Em nota, a entidade disse ter seguido as diretrizes vigentes do Comitê Olímpico Internacional (COI) e afirmou que não "contava a Declaração de Gênero com firma reconhecida e nem a comprovação de que o nível de testosterona da atleta foi inferior a 10nmol/L por pelo menos 12 meses antes da primeira competição". Já a gestora do Curitiba abriu as portas para a jogadora no futuro. Veja as notas na íntegra no fim da matéria.
Mabelly entrou em depressão. Desde o entrave, não conseguiu mais treinar. Tem tido dificuldades para bancar os remédios e exames necessários para, quem sabe, atuar na próxima Superliga. No Brasil, apenas Tifanny, do Osasco, conseguiu passar por todos os passos para se tornar a primeira jogadora transexual a atuar no principal campeonato nacional. Mabelly ainda sonha seguir os passos da pioneira. Neste sábado, no Dia da Visibilidade Trans, o ge abre espaço para o depoimento da ponteira.
Fiquei depressiva, sem vontade de comer, de fazer nada. Agora que eu estou conseguindo voltar à minha vida normal. Não consegui voltar a treinar ainda. Mas eu preciso. Sempre foi o meu sonho jogar profissionalmente, jogar na Superliga, em clubes grandes. Até na Europa. É o meu sonho e não vou desistir.

A história de Mabelly*
Comecei a jogar vôlei na escola. Meu professor de educação física me viu e me chamou para fazer um teste em um time que ele era técnico, em São José dos Pinhais. Fiz o teste e passei. Comecei a jogar, participar dos campeonatos escolares e a participar das competições, no município e fora da região também, como a Taça Paraná, Juventude. Vários campeonatos. E sempre ganhava destaque em vários deles. Aos 19 anos, comecei a minha transição.
Eu já tinha vontade e interesse em jogar no Curitiba. E a Gisele Miró meio que já sabia de mim. Só que nunca tinha me convidado para treinar com a equipe. Eu estava viajando no Norte do Paraná, na casa do meu pai. Recebi uma ligação dela, perguntando se queria treinar e jogar. Ela disse que pagava minha passagem e que era para eu fazer um teste. Daí eu voltei, fui para Curitiba. Treinei com as meninas, fui muito bem recebida. E a Gisele foi me pedindo meus exames para mandar para a CBV.
Treinava todos os dias. Fazia academia de manhã, voltava para casa e tinha o treino à noite. Só que era muito longe da minha casa. Eu moro em Pinhais, na região metropolitana. E o treino era em Curitiba.
A Gisele pedia meus exames. Ela me dizia que estava quase tudo certo para eu jogar a Superliga, que ia começar. O primeiro jogo era contra o Barueri. E eu ali, treinando, participando de amistosos, me dedicando todos os dias.
Daí, entreguei os exames. Eu não tinha tantas informações sobre os exames, não sabia que eram 12. Eu não tinha os 12. Eu tinha só quatro. Mas ela me disse que estava tudo certo. E eu ansiosa, nervosa. Ia jogar contra o José Roberto Guimarães. Fiquei treinando, comendo bola.
Antes da viagem, estava no treino da tarde. Fiz o teste do Covid, o exame de sangue, um monte de coisas no clube. Quando eu estava voltando para casa, por volta das 16h, Gisele me ligou, dizendo que precisava de uma declaração, assinada por mim, de que eu era mulher. Eu achei um absurdo. Eu tenho os documentos femininos, CPF, RG. Fiquei muito sentida, me doeu bastante. Ela me mandou a declaração, disse que eu tinha que autenticar no cartório.
Fui correndo, ela me avisou em cima da hora. Cartório era longe, quando eu cheguei, já estava fechado, computadores desligados. Não deu tempo.
Como não deu tempo, ela me disse que eu precisava ir cedo para o cartório para pegar essa declaração. Nossa viagem era às 13h30. Acordei cedo. Já tinha combinado de ir para a casa de uma menina do time, porque o pai dela nos levaria para o aeroporto. Quando eu já estava indo para o cartório, Gisele me ligou e disse que a CBV havia me barrado. Porque eu não tinha mandado a declaração no dia anterior. Eu fui barrada não pelos exames, mas por essa declaração.
Eu fiquei sem entender, comecei a chorar muito. Fiquei depressiva. O remédio que eu tomo causa isso também. Não consegui mais treinar, estou até hoje sem conseguir. Mesmo elas me chamando para ir aos treinos. Esse remédio é um bloqueador de testosterona. Ele me deixa muito sentimental. Tudo eu choro, mexe muito com o psicológico. Fiquei muito sentida. Eu não esperava, achei que fosse conseguir jogar. Mas foi tudo muito rápido. Eles me aceleraram demais. Por me darem a expectativa, eu estava muito feliz, mas muito ansiosa. Como fiquei barrada, fiquei depressiva, sem vontade de comer, de nada. Agora que eu estou conseguindo voltar à minha vida normal. Mas não consegui voltar a treinar ainda.
Mas eu preciso. Sempre foi o meu sonho jogar profissionalmente, jogar na Superliga, em clubes grandes. Até na Europa. É o meu sonho e não vou desistir. Sei que está nas mãos de Deus. Quando for para eu jogar, eu vou jogar. Estou tomando meus remédios, fazendo meus exames. Vai demorar mais um pouquinho. Tenho que continuar levando esses exames para a federação. Tomara que dê certo, é o meu grande sonho.
No meio dessa confusão, dessa turbulência. Eu recebi mensagens, muita gente me apoiando, mandando energia positiva. Fiquei muito feliz. Até mesmo de agenciadores. Eu não entendo tanto. Mas não sei. Como eu parei de treinar e não consegui jogar, se afastaram.
Nesse Dia da Visibilidade Trans, queria muito que as pessoas dessem mais confiança a nós, mulheres trans. Um pouco mais de visibilidade. Nós não queremos invadir o espaço de ninguém. Eu só quero jogar vôlei. Não quero mais nada além de jogar, de praticar o esporte".

Posicionamentos
Gisele Miró, gestora do Curitiba
- A CBV pediu exames mensais comprovando que a taxa estava dentro do limite 12 meses antes de ela competir. Ela tinha exames que comprovavam que a taxa estava abaixo 12 meses antes e outros exames esporádicos, já que ela afirmou que não tinha condições financeiras para realizar os exames todos os meses. Não sei nem se a Tifanny apresenta exames mensais para a CBV. Mas quanto a Mabelly, o primeiro requisito para podermos argumentar com a CBV, que seria uma declaração em cartório de que ela é mulher (exigida pelo COI), ela não fez. Então não teve como ajudá-la. Claro (que ela tem as portas abertas). Desde que ela esteja 100% dentro dos requisitos. Também sou favorável à intensificação dos exames antidoping.
CBV
“Quando recebeu o pedido de inscrição da atleta Mabelly na Superliga, a Confederação Brasileira de Voleibol (CBV) seguiu as diretrizes vigentes do Comitê Olímpico Internacional (COI) para atletas que passaram por redesignação sexual. Na documentação enviada pelo Curitiba Vôlei, não constava a Declaração de Gênero com firma reconhecida e nem a comprovação de que o nível de testosterona da atleta foi inferior a 10nmol/L por pelo menos 12 meses antes da primeira competição. Os dois documentos eram parte do pacote de requisitos exigidos pelo COI para casos como esse.

Commenti